Hitler não ter nascido na Alemanha não era, na visão nazista, um demérito.
No senso comum, que chega a comentar o tema, e mesmo em aulas de História (nas que eu tive no Ensino Básico, por exemplo) o fato de Adolf Hitler ter nascido na Áustria - e não Alemanha - é apresentado como uma contradição.
Afinal, o líder nazista defendia a teoria de que os alemães eram da "raça" dos "arianos", mas não era nascido na Alemanha.
Acontece que isso é uma incompreensão da realidade histórica a respeito do pensamento racial do Nacional Socialismo Alemão.
A crença metafísica dos nazistas (pois era uma interpretação que unia uma lógica material com uma lógica transcendental - fortemente crítica ao materialismo Marxista e ao materialismo individualista do Liberalismo) compreendia a "raça" alemã como uma descendência direta, e mais "pura", dos "arianos".
O termo deriva de "arya", palavra com raiz indo-iraniana, e aparecia em textos hinduístas (os famosos "Vedas") se referindo a um povo "nobre" e "honrado". Durante o século XIX, estudos de linguística comparada perceberam semelhanças muito significativas em idiomas antigos como o Sânscrito, Persa antigo, Celta, Germânico, Grego e Latim. Foram considerados como idiomas indo-europeus.
Os falantes originais das línguas indo-europeias orientais foram denominados no campo da Linguística de "arianos", especialmente os que originaram o Sânscrito e Persa.
Entre alguns, os arianos foram reconhecidos não apenas como falantes de um idioma comum, mas originados de uma "raça" comum.
Os membros nazistas tiveram contato com leituras de produções da Linguística, Arqueologia e Antropologia que sugeriam a existência de um povo indo-europeu dominante. Esse povo teria conquistado a maior parte do globo em algum momento obscuro do passado.
Entre os pensadores que influenciaram fortemente o pensamento dos nazistas estão Arthur de Gobineau (que publicou um livro sobre raças humanas em 1853, colocando os arianos como superiores - Heinrich Himmler menciona esse como um dos pilares do pensamento racial nazista), e do genro de Richard Wagner, Houston Stewart Chamberlain (que publicou, em 1899, uma extensa obra defendendo que a história da Europa era uma luta entre duas raças: raça germânica, o ápice da cultura, e a raça judaica, o declínio de qualquer grupo social, antinatural e parasita).
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Início do livro de Chamberlain, citando Arianos. 1899. Fonte: archive.org. |
Gobineau era pessimista em sua visão racial. Acreditava ser impossível resgatar a "pureza" dos arianos. Diferente de Chamberlain. Esse chegou a encontrar pessoalmente com Hitler em 1923, manifestou que via nele a esperança da Alemanha e um homem enviado por ordens divinas (uma leitura de "salvador" sobrenatural que depois aumentaria).
Os nazistas seguiam a mesma lógica otimista para suas ideias raciais. Acreditavam ser possível recuperar a "raça ariana".
Membros do nazismo consumiram essas produções, mas também pesquisas Arqueológicas.
Ainda no século XIX, arqueólogos buscavam vestígios dos arianos. Conseguiram encontrar, em escavações na Europa, Índia e Ásia Central, um frequente símbolo: a suástica. Existia a interpretação que os arianos teriam dominado essa região. Ainda emergiu a hipótese de que teriam ampliado sua ocupação por outras regiões em busca de expansão.
Nazistas acolheram e reformularam - com base em suas próprias leituras de mundo - ideias que uniam os arianos, o meio ambiente, a história e uma expectativa de futuro. Concordaram com interpretações que viam o Norte da Europa como berço dos "verdadeiros arianos". Os germânicos seriam então os arianos mais "puros".
Quando os nazistas falavam em Alemanha, não se referiam àquela divisão política existente no século XIX e início do XX. Eles se referiam a uma sociedade que pensavam ter existido em um passado distante. Uma sociedade construída com os valores "superiores" dos tais arianos/germânicos. Mas não apenas isso. Não pretendiam recuperar um passado imaginado e o conservar. Seu interesse era "salvar" a raça alemã e construir uma Alemanha melhor e maior do que a do passado e do presente. A visão do Nacional Socialismo Alemão era a de realizar uma revolução cultural e racial. No centro dessa revolução estava o embate entre arianos (supostamente superiores, com melhor cultura e mais fortes) contra os judeus (supostamente inferiores, parasitas do meio ambiente alemão, destruidores da cultura alemã - seriam os criadores tanto do materialismo marxista quanto do individualismo capitalista).
Por raça alemã eles não compreendiam apenas quem nascia na divisão política que naquele século era chamada de Alemanha. Eles compreendiam como parte da raça alemã todos aqueles que compartilhassem a "pureza" do sangue ariano/germânico.
Hitler não ter nascido na Alemanha e sim na Áustria, mas ter o "sangue ariano", não era algo que contaria negativamente. Isso, na visão racial nazista, era um ampliador de suas crenças. Afinal, era um exemplo de como a Alemanha deveria se ampliar para todas as regiões em que os arianos estivessem.
Isso simbolizava a legitimidade para a incorporação da Áustria, e de outras regiões, pela Alemanha que os nazistas desejavam construir.
A simbologia não era exclusiva de Adolf Hitler. O seu "vice" no Partido Nazista, o pouquíssimo comentado Rudolf Hess, não era nascido na Alemanha. Também não nasceu na Áustria. Na verdade, em nenhum país da Europa. Hess nasceu, de pais "germânicos", no Egito. Para ser mais específico, na cidade de Alexandria.
Assim como Hitler, Hess também era considerado como membro do volkisch alemão. Esse volkish era um sentimento idealizado que supostamente unia, de forma orgânica, a Alemanha material (solo - sinônimo de meio ambiente - e sangue) com o povo alemão/germânico. Também unia os germânicos entre si mesmos.
Era então uma conexão dos alemães entre si, em uma comunidade, e com a própria Natureza da Alemanha. Nessa lógica, os nazistas buscavam recuperar aquilo que consideravam ser o verdadeiro Socialismo. Ele seria de origem germânica, nacional e transcendental. Diferindo drasticamente do Socialismo Marxista, que eles acreditavam ser uma deturpação judaica.
Nazistas, nessa lógica de Socialismo Alemão, inclusive mantinham a ideia de que o "bem comum" (do volkisch) deveria estar acima da vontade individual (que seria parte do liberalismo-capitalismo, também compreendido como deturpação dos judeus).
No geral, em aulas de História, do Ensino Básico e mesmo Superior, as ideias raciais do Nazismo são simplificadas. Dando margem para compreensões equivocadas sobre como funcionava o pensamento racista dos nazistas.
Penso que é importante, para nós profissionais da área da História e qualquer um que tente falar sobre a história, compreender a complexidade da realidade. Do presente e do passado.
Referências:
CHAMBERLAIN, H. S. The Foundations of the Nineteenth Century. London: Swan Sonnenschein & Co., 1899.
EVANS, Richard J. A chegada do Terceiro Reich. Tradução de Renato Marques. São Paulo: Planeta do Brasil, 2010.
GOBINEAU, Arthur. An Essay on the Inequality of the Human Races. New York: Burt Franklin, 1853.
GOODRICK-CLARKE, Nicholas. The Occult Roots of Nazism: The Ariosophists of Austria and Germany, 1890–1935. London: Aquarian Press, 1985.
STAUDENMAIER, Peter. Between Occultism and Nazism: Anthroposophy and the Politics of Race in the Fascist Era. Leiden. Boston: Brill, 2014.
UEKöTTER, F. The Green and the Brown: A History of Conservation in Nazi Germany. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.
VITTE, Antonio Carlos. A preservação da paisagem e a conservação da natureza no III Reich. Confins: Revista Franco-Brasileira de Geografia, [Paris], n. 32, p. 1-14, 2017.
WEIKART, Richard. From Darwin to Hitler: Evolutionary Ethics, Eugenics and Racism in Germany. New York: Palgrave Macmillan, 2004.
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