CRÍTICA - Espetáculo Belém - Bragança, e os trilhos da Esperança (2024)

No século XIX, os políticos e muitos comerciantes da região amazônica sonhavam e planejavam a execução de uma Estrada de Ferro. Com os trilhos seria possível o uso de uma tecnologia muito avançada para a época, que eram as locomotivas a vapor. As esperanças de muitos políticos e comerciantes era impulsionar o comércio, a comunicação (facilitando envios de carta e circulação de ideias), além da arrecadação de impostos e criação de empregos. Para a população, em muitos momentos a mobilidade era bem recebida, mas em outros poderia ser geradora de problemas ainda não vivenciados com a tecnologia das locomotivas, dos sociais aos ambientais. Em 1884 foi inaugurado o primeiro trecho de uma Estrada de Ferro, conectando Belém e Benevides por trilhos. A expectativa com os trilhos era conectar Belém com a colônia agrícola de era Bragança, visando o escoamento de produtos alimentícios e outros, além de transporte de pessoas e mensagens. 

Aí começa a vida da Estrada de Ferro de Bragança, que apenas em 1901 teve seu trecho de Bragança inaugurado. O espetáculo dirigido por Geraldo Sales, com o roteiro de José Leal (falecido em 2021) e do seu "Grupo Experiência" (todas mencionados são conhecidos em Belém pelo já tradicional espetáculo de outubro, "Verde Ver-o-Peso"), toma esse cenário histórico como paisagem para narrar "causos" - da memória ou da ficção - que ocorriam em torno dos trilhos, das paradas e dos vagões da Estrada de Ferro de Bragança. Entre cantoria, coreografias, comédia, memórias e críticas ao passado e presente, o espetáculo se realizou no Theatro da Paz, dia 13 de março de 2024.

Confesso que aguardava uma estruturação do espetáculo em torno de uma preocupação maior com a representação de um ambiente histórico da passagem do século XIX para o XX. Algo que sem dúvidas significa necessidade por mais orçamento, mas sem o qual transforma a Peça em uma obra distanciada quase totalmente do histórico para uma abordagem mais fantasiosa. O que não é negativo. Porém, a obra inicialmente não se apresenta dessa forma em seus textos de apresentação. Falta o ambiente histórico oferecido. Inclusive não exibe mais diretamente, apenas em detalhes no texto, aquilo que é apresenta no resumo sobre a Estrada. Como, por exemplo, o transporte de ideias facilitado com os trilhos, de escoamento de produtos agrícolas. 

Em algumas situações o texto parece se contradizer. Afinal, em um momento os personagens são contrários a nova tecnologia, que se torna objeto até mesmo de previsão sobrenatural da anciã, no seguinte dançam e cantam felizes com a locomotiva. Para apenas muito posteriormente um trágico acontecimento afetar - por um breve momento e não a totalidade do roteiro - a visão das pessoas sobre a "maldita Maria Fumaça". Também não segue uma forma linear. Une diferentes situações que não parecem possuir um fio de conexão entre si, pelo menos nada além do fato de terem ocorrido próximo ou em cima dos trilhos. Algumas acabam até mesmo ficando perdidas. O que um roteiro linear e mais conectado talvez solucionasse. 

A pretensão de "colonizar grandes extensões de mata virgem que corriam paralelas aos trilhos da ferrovia" poderia ser mais explorada. Afinal, o processo de instalar essa tecnologia acarretou muito desmatamento, em uma região que tinha nos rios as suas principais formas de transporte (o que é mencionado em apenas um momento do texto). E não apenas na instalação. A continuidade das viagens dependia fundamentalmente de combustível. Esse era produzido com a extração de árvores para servirem de lenha nas fornalhas das locomotivas, pois até o século XX o consumo na região era principalmente de lenha - não carvão mineral ou mesmo o vegetal. Omite também o trabalho, aqueles sujeitos históricos que participaram das obras para instalação e permanência da Estrada. O que é curioso, pois o Diretor manifestou que tinha interesse em realizar o espetáculo desde que assistiu a série "Madeira-Mamoré" (provavelmente se referia a série da TV Globo "Mad Maria" - Autoria de Benedito Ruy Barbosa; Direção de Amora Mautner; 2005 - baseada no romance de Márcio Souza). Uma série que toma os trabalhadores e seus sofrimentos como personagens principais desde a abertura (com os trilhos sendo preenchidos de vermelho, em meio a fotos, aludindo ao sangue daqueles que trabalharam em sua instalação).

Próximo ao fim, a crítica busca sentimento no já clichê "somos cabanos". Algo que existe mais na ideia que intelectuais do Pará possuem a respeito do que foi a cabanagem, e sobre como o povo reconhece isso, do que na vivência prática paraense. O que não prejudica a boa execução do que se apresentou. Com a organização técnica, considerando a proposta, a obra pode ser elogiada. Iluminação, coreografia e sonoplastia. Entre as atuações, aos meus olhos se destacaram as de Natal Silva e Nilton Cezar.

Ao sair do espetáculo, foi difícil não ficar decepcionado por esperar uma proposta - um pouco mais conectada com os séculos XIX-XX, do figurino ao cenário - e receber outra. Refletindo também sobre a real necessidade de algumas estratégias de comédia, em especial as que usam a figura feminina em situações ou temas sexuais. Quando visualizadas em um contexto geral o humor parece um pouco "datado", como dizem. Algo presente no texto de Verde Ver-o-Peso, mas que não é estranho por conta de ser um texto encenado há muito tempo (desde 1983). Para "Belém - Bragança, os trilhos da esperança", não parece se justificar por necessidade ou por questão de já ser uma encenação antiga.


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