Em 31 de dezembro de 2021 foi publicada uma matéria no site da BBC Brasil intitulada "Zélio, o Caboclo das Sete Encruzilhadas: o fundador da umbanda que não é bem aceito por umbandistas atuais". O artigo não parece ter preocupação de estudo histórico, mas é um espaço para pesquisadores/ativistas manifestarem discordância com o que se escreve há muito tempo sobre o histórico da Umbanda. Entrei na matéria muito empolgado, pois a Umbanda é uma religião que, junto com o Mormonismo, me causa muito interesse. Na realidade, saí do Ensino Médio para a Graduação em História com o objetivo de pesquisar sobre o histórico de discriminação contra religiões de matrizes africanas, com destaque para a Umbanda. Meu tema mudou, mas o interesse em continuar pesquisando, principalmente sobre Umbanda e Candomblé, nunca desapareceu. Justamente por isso entrei empolgado na matéria da BBC, mas pouco vi de preocupação com o real e muito vi de luta por domínio de uma narrativa. Ao longo do texto, Zélio Fernandino de Morais (pessoa que teria sido o "aparelho" o qual o Caboclo das Sete Encruzilhadas utilizou para fundar a Umbanda) é tratado como "um homem branco classe média que se apropria da cultura dos centro-africanos e seus descendentes" (pelo "historiador Watanabe" - Guilherme Watanabe). Já "para Fiorotti"(Lucas Fiorotti) a história contada é na verdade "embranquecimento da umbanda, dentro da ideia da democracia racial, de que não há racismo no Brasil, de que as relações raciais são simétricas". David Dias (que suponho ser David Dias Delgado) destaca ainda duas formas de perceber a história da Umbanda vista a partir de Zélio Morais: "A primeira traz sua vida contada por meio dos manuais de umbanda e mantida pela sua família, a qual assegura sua memória até os dias de hoje. Já a segunda é contada por meio de um mito de criação onde cada um que conta aumenta uma ponta, deixando na história contada uma lenda de existência questionável". Não conhecia nenhum desses pesquisadores. Mas achei estranho a forma simplista a qual trataram sobre o tema.
Logo no início a matéria afirma que muitos pesquisadores atuais defendem que "considerar Zélio o precursor dessa religião é também resultado de um processo de embranquecimento". Para isso se confirmar seria necessário apagar toda a história da Umbanda e que se conta sobre a Umbanda. Essa religião se forma justamente contra um "embranquecimento", contra a presença de um eurocentrismo em reuniões espíritas. O Caboclo das Sete Encruzilhadas (manifestação indígena) teria utilizado Zélio de Morais como "aparelho" e se manifestado em uma reunião espírita (kardecista). A reunião não aceitava nenhum Preto-Velho ou Caboclo, apenas espíritos que se apresentavam como antigos doutores, em sua maioria europeus. Sete Encruzilhadas teria então afirmado que esses espíritos não aceitos na reunião seriam bem recebidos na casa de seu aparelho, Zélio. Teria então se formado a "Linha Branca da Umbanda", como o jornalista e umbandista Leal de Souza chama em seu livro "Espiritismo, magia e as sete linhas da Umbanda"(1933). No livro, quando trata sobre as organizações de agir de entidades do mundo espiritual destaca que a que mais conhece "é a fundada pelo Caboclo das Sete Encruzilhadas". Apresentava também "Zélio de Moraes, médium do Caboclo das Sete Encruzilhadas". Reconhecia a fundação de uma religião diferente, com "sistematizada solidez de sua organização, pelos métodos e concatenações de seus trabalhos, e pelo inflexível rigor de sua disciplina".
A Umbanda emerge com a crença na não discriminação dos espíritos. Seriam aceitos se fossem indígenas, negros, brancos, pardos, etc. Surge justamente contrapondo os limites, em certa medida racistas, que apareciam em reuniões espíritas. A história da Umbanda ligada a Zélio de Morais não é "uma história privilegiada para encarnar a umbanda da democracia racial", como aponta um pesquisador na matéria, mas emerge a partir do reconhecimento do racismo. Além disso, o papel de fundador não é título de Zélio, mas da entidade. O Caboclo das Sete Encruzilhadas é tido como fundador da Umbanda e Zélio seu aparelho no mundo material - seu fundamento é ainda baseado "no exemplo de Jesus".
Em determinado trecho se afirma que "A estrutura umbandista já existia no século XIX". Baseado em que se afirma isso? O que seria essa "estrutura"? Caso se afirme que seriam as semelhanças com outros rituais já existentes, poderíamos então dizer que a "estrutura" da Umbanda já estava no Brasil antes mesmo da colonização. Afinal, a Umbanda também possui tradições de grupos indígenas. Desconsiderar isso é apagar totalmente a Pajelança, que é de origem indígena, como uma das manifestações de religiosidade que também dá raízes para a Umbanda. Inclusive, a origem etimológica do termo não é tão certa quanto afirma Watanabe ("das línguas quimbundo e umbundu da África Central e 'significa algo como arte ou maneira de curar'"), mas parecem ser apenas apontamentos de possíveis origens. E um desses apontamentos destaca a possível origem nativa do termo, como sendo do tronco Tupi.
A matéria da BBC não nega apenas a Umbanda como brasileira, mas também oculta as diferentes interações de variados grupos para sua construção. É impossível negar que a Umbanda emerge no século XX, no Brasil, e a partir da interação entre culturas de diversos povos. Creio que os pesquisadores entrevistados pela matéria parecem tratar todos os rituais praticados por diferentes grupos negros escravizados no Brasil como Umbanda. Acabam até falando em Umbanda antes mesmo de o termo começar a ser utilizado. Tentam "purificar" a Umbanda defendendo que foi "trazido ao Brasil". O problema é que isso já é uma afirmação difícil de sustentar para o Candomblé (que no Brasil, a partir da interação entre culturas de diferentes nações do continente africano, já se torna algo diferente e específico), para a Umbanda se torna mais complicado ainda. As interações obviamente não foram simétricas, mas é inegável que existiram. Negar isso não é fazer estudo histórico, mas panfleto político.
Até a década de 1950 aparecem fontes que reconhecem a Umbanda como uma prática recente. Comentando-se até que a "Umbanda, religião de culto aos espíritos começou a aparecer em 1920" (Jornal do Commercio - Amazonas. 01 de jun. de 1957, p. 6). Destacando que os "pontos" da Umbanda misturavam religiões, ressaltava a seguinte canção: "Oxalá, Yára, têm pena de nós, tem dó! Se a volta do mar é grande, seus poderes é maió!". E outra dizia que "São João Batista vem vindo de Aruanda".
No jornal Diário da Tarde (PR), em 18 de jan. de 1957, José Arantes escrevia defendendo os umbandistas, a interação entre diferentes culturas fica evidente:
"Não se amedrontem os verdadeiros Umbandistas e prossigam em sua jornada de AMOR e de FÉ separando o joio do trigo, certos de que JESUS abençoará o teu trabalho, permitindo que os humildes Pretos-Velhos e os caboclos leais aliados a outros mentores espirituais continuem a socorrer os de bôa vontade, evangélica e devotamente."
A Umbanda emerge com grande interação entre diferentes culturas religiosas. Não apenas de diferentes grupos africanos, mas também de diferentes grupos nativos brasileiros e diferentes grupos europeus. A história que se conta sobre a Umbanda não é uma em defesa da existência de "democracia racial", pelo contrário. Surge a partir do momento que reconhece que isso não existe, mas o fim da discriminação racial deveria ser alcançado. No mais, a BBC deveria ter fornecido mais atenção para a matéria. Em alguns momentos fiquei com dúvida se os pesquisadores realmente conheciam o tema que comentaram. Mas não vou alongar mais o que escrevi. Esperando apenas alguém explicar ao que se referiam quando comentaram que "a figura do Caboclo das Sete Encruzilhadas também apresenta 'incongruências'".
Meu Deus, que texto maravilhoso, embasado e bem escrito! E ainda fica a pergunta: o título diz que Zélio não é bem aceito pelos Umbandistas atuais. Cadê as evidências para tal afirmação? Houve uma pesquisa? Qtos Umbandistas foram ouvidos? Qual foi o recorte geográfico? Enfim, super tendenciosa a matéria que a BBC publicou.
ResponderExcluirObrigado pelo comentário. Realmente a matéria é problemática desde o título.
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