As mesas de Natal de Birger Cranner (1902-1945)

No período natalino é satisfatório olhar gravuras e cartões antigos que representam essa data. Selecionei dois cartões desenhados pelo norueguês Birger Cranner. Trago esse autor específico para criar uma contraposição entre a comemoração do Natal e as possíveis visões de mundo do autor. Uso o termo possíveis, pois não é um sujeito histórico muito pesquisado. Pouquíssimo se sabe sobre ele e os motivos de alguns de seus atos. Tratemos primeiro das obras, depois do autor.

Nesse primeiro cartão de natal, Cranner dá destaque para uma mesa. Uma ceia natalina farta e bem disposta. Duas velas iluminam o ambiente e os pratos que estão à disposição para serem saboreados. 


Christmas card. Birger Cranner, ano: ???. Fonte: artvee.com/

Entre as carnes, se destacam o porco, um aparente frango, linguiça e um corte que poder ser presunto ou pernil de carneiro. O porco é muito presente na mesa de Natal norueguesa. Um dos pratos mais conhecidos de Natal na Noruega é o Ribbe, um prato composto de barriga de porco crocante e acompanhado de batatas, molho, legumes (especialmente repolho) e verduras. Ao que parece, é um prato que começa a se construir modernamente no início do século XX.

Apesar de a cabeça de porco estar destacada nessa mesa, atualmente o mais comum é o prato com cabeça de carneiro assada, chamado Smalahove. É possível que a cabeça de porco fosse usada como uma substituição ao carneiro, ou apenas mais uma possibilidade para a mesa.

A presença do pernil de carneiro também é muito possível, pois é frequente nas casas durante as comemorações natalinas. O exemplo mais conhecido é o Pinnekjøtt. Um prato de costela de carneiro acompanhado de batata assada e purê de nabo.

Sobre a lagosta, que tem bastante destaque em vermelho no desenho, não encontrei detalhes sobre a presença desse fruto do mar na mesa de Natal norueguesa. A lagosta representada parece ser a "lagosta europeia" (Homarus gammarus), mas encontrei relatos de famílias que possuem o hábito de cozinhar para o Natal a "lagosta norueguesa" (Nephrops norvegicus), que possui um tamanho significativamente menor do que a lagosta europeia. A norueguesa chega até 20 centímetros, já a europeia pode atingir até 60 centímetros.

Também aparece na mesa, queijo e frutas, como bananas e frutas que lembram uvas verdes. As frutas laranjas não são laranjas, mas clementinas (cruzamento entre laranja doce e tangerina). Não ouso chutar o que está contido no balde ao fundo, e ainda nas duas tigelas com alimentos de difícil identificação. 

Ao fundo do desenho: as bebidas. Duas garrafas de vinho (ou uma com cerveja?) para acompanhar as delícias da noite.


No segundo cartão, a cena apresenta um homem preparado para se alimentar dos pratos exibidos.


Christmas card, 2. Birger Cranner, ano: ???. Fonte: artvee.com

Diferente do outro cartão, neste parece que o assado principal é um peru, chamado de "kalkun" na Noruega (no outro cartão a ave aparentava mais ser um frango, pelo tamanho do osso das coxas). O porco está ausente, mas a lagosta ainda continua representada em destaque, e também consta um pernil ou presunto.

Além das frutas, as bebidas continuam na mesa. No entanto, esta cena apresenta taças servidas e uma garrafa de champanhe no interior de um balde de gelo, ao lado da mesa. O calor (ou seria o aroma?) dos alimentos é simbolizado em ambas as cenas, mas na segunda temos a expressão de felicidade daquele que irá se empanturrar com os itens.

Birger Cranner teve a sensibilidade em buscar captar o cotidiano alimentar do Natal. Uma festa muito simbólica, mas com valores que contrastam com detalhes biográficos do artista.

Afinal, ele foi membro da Den norske legion (Legião Norueguesa), uma unidade militar na Noruega subordinada à Waffen-SS. Ou seja, Cranner lutou como aliado dos Nacional Socialistas Alemães. Essa unidade foi criada após o ataque da Alemanha contra a União Soviética, em 1941, que rompeu o Pacto entre os Soviéticos e Nazistas. Um partido nacionalista da Noruega, juntamente com lideranças da Alemanha (como Josef Terboven, que depois seria líder supremo da Noruega ocupada pelos nazistas), convocaram noruegueses para a luta direta na Frente Oriental da guerra (palco de guerra que atravessava a Europa Central e Oriental, criada depois do rompimento do Pacto Nazi-Soviético). 

Essa Legião foi finalizada apenas em 1943. No ano seguinte, Birger Cranner publica seu livro livro que unia experiências na guerra e o talento do desenho.

Em 1944, Cranner publicou um livro descrito como relatos do fronte de guerra, humorístico e de caricaturas. Infelizmente não consegui acesso a ele para observar o conteúdo, apenas a capa em uma resolução muito ruim. O livro é intitulado "Kjære mamma: tegninger fra soldatlivet i leiren og ved fronten" (Querida mãe: desenhos da vida do soldado no acampamento e na frente de batalha).

Pouco consegui saber da morte desse artista. Descobri apenas que ocorreu em 1945. Vi sugestões de que ele pode ter sido executado por traição, logo no início do período pós guerra. Li informações de que ele teria trabalhado como cozinheiro. Difícil ter certeza, pois as fontes são muito escassas.

A maior dúvida que fiquei sobre Cranner foi a respeito de suas visões de mundo. Afinal, lutou como parceiro dos nazistas e desenhou propagandas em favor do alistamento de noruegueses na Legião  Norueguesa. No entanto, sabemos que o palco de guerra em algumas regiões envolveu complexas questões existenciais e de horizontes de expectativa (pensar qual futuro seria menos pior). O caso da Finlândia é o mais significativo, em que até mesmo soldados judeus colaboraram com a Waffen-SS em algumas frentes de batalha, lutando contra em outras frentes. 

O mundo é mais complicado do que 2+2. Justamente por isso fiquei refletindo se Birger Cranner era apenas mais um que de fato concordava com a visão racial e metafísica dos nazistas ou tinha mais camadas em sua visão de mundo. 

Caso nazista convicto, suas ilustrações natalinas funcionam para exibir, uma vez mais, como a mente humana que produz sensibilidade artística pode ser aquela que concorda com o grotesco no mundo material. 

Uma mente é sempre mais complexa do que parece. Digo que essa é a palavra que eu usaria para descrever a história natural e humana: Complexa.

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