NAS ÚLTIMAS NOITES venho tendo esse pesadelo. Não sei ao certo quantas noites ele já atormenta meu sono, mas está se tornando um problema.
Mesmo que eu já saiba tudo que irá acontecer ainda sinto o mesmo terror que senti quando sofri o pesadelo pela primeira vez.
A velha desgrenhada me pedindo ajuda, me puxando pelo braço. No sonho sinto uma mistura de temor e pena.
Aterrorizado por não saber quem é a senhora que me pede ajuda, por ter meu braço puxado, e, acima de tudo, pela feição assustadora da idosa. Mas com pena, compadecido da tristeza que a velha carrega no olhar. Nunca havia sonhado algo tão real e nítido. Muito menos conseguido olhar tão profundamente nos olhos de uma pessoa de um dos meus sonhos. E pior ainda, alguém que nunca conheci na vida real.
Trabalho em uma oficina de automóveis da Cidade Nova. Ganho o suficiente para me manter e ajudar minha mãe. Moro sozinho com ela em uma casa alugada na parte VIII do bairro (chamado de Cidade Nova VIII). Trabalho na parte IV.
Todo dia vou caminhando para a oficina às 6h da manhã. Normalmente as oficinas abrem a partir das 8h, justamente por isso meu patrão opta por abrir às 6h. “Menos concorrência”. O idiota não percebe que também não existe público esse horário. Talvez seja por isso que os outros abrem somente a partir das 8h, não?
Lembro-me da última vez que atendemos um cliente antes das 8h, isso foi há exato um ano. Lembro porque foi no dia de meu aniversário de 30 anos. Hoje faço 31.
Naquele dia eu andava a passos lentos pela rua We 28, caminho mais rápido para ir de casa para o trabalho. Ao chegar à metade da rua, vazia, silenciosa, pude escutar gritos altos que vinham de uma das casas. Parecia uma mulher gritando. Ouvi barulhos que não consegui distinguir. Uma aflição tomou conta de mim. Não sabia o que deveria fazer. Eram no máximo 6h 20 da manhã, os vizinhos deveriam estar dormindo, mas com barulhos como aquele seria impossível nenhum curioso sair para saber o que estava acontecendo.
Eu não sabia o que fazer. Mas já sabia de qual casa vinham os barulhos. 521.
Os gritos continuavam e eu pensei que deveria ir até lá para tentar fazer algo.
Mas nem sempre o que devemos fazer é o que optamos por fazer.
Um desconforto tomou conta de meu corpo e mil teorias passavam pela minha cabeça. Afinal de contas era a casa 521.
O tão falado dono da casa era um homem macabro, não deveria ter mais de 40 anos. Vestia-se sempre de preto e utilizava adereços que para mim soavam demoníacos. Desde um anel com uma cabeça de bode a um colar com o que imagino ser uma pata de sapo. Falando assim parece fantasioso demais, eu também penso dessa forma. Se não tivesse topado com ele por umas duas vezes quando caminhava para a oficina também não acreditaria nessas descrições.
Não era um daqueles roqueiros, ou pelo menos ninguém nunca o viu ouvindo músicas, usando camisetas de bandas famosas, ou fones de ouvido. Diziam que ele servia a alguma coisa que não era de Deus. Toda quarta a partir das seis horas, ao que contam algumas vizinhas sentinelas, ele colocava duas velas vermelhas na janela do pátio de sua casa. As más línguas diziam que era para o demo em pessoa.
Sabendo de todos esses detalhes, o receio e incerteza tomavam conta do meu corpo. Ir até os gritos ou continuar em meu caminho? Eis a questão.
Não seria possível nenhum morador não ter escutado os gritos. Considerando a curiosidade dos moradores locais isso só aconteceria por feitiço. Agora pode parecer imbecilidade, mas no momento foi o que pensei. Seja lá o que o tal satanista estivesse fazendo não seria eu a incomodar. Meu medo foi mais intenso que minha noção de dever.
ÀS 6H 20 de uma manhã que o sol ainda não estava no alto nem todo mundo é corajoso ao se deparar com uma situação dessas. E infelizmente eu faço parte desse grupo.
Continuei minha caminhada até o trabalho.
O primeiro cliente apareceu apenas às 7h 30. Foi a última vez que me lembro de ter atendido alguém tão cedo.
Depois daquele dia não passei mais pela rua de número 28. Fazia sempre um caminho um pouco mais longo, mas preferia evitar em passar pela casa do bruxo.
Mas curiosamente hoje foi como se tivesse sido abestalhado por alguma magia. Após sair de casa no horário de 6h, lembro-me somente de começar o caminho para meu trabalho, quando me dei por mim em certo momento, me encontrava naquela maldita rua. We 28 novamente.
Já estava próximo ao final da rua. Estranhei bastante estar naquele local sem lembrar como cheguei lá. Por alguns segundos pensei ser um sonho, mas vi que não.
Continuei a caminhar quando ouvi algo que não esperava.
Os mesmos gritos. Vindos da mesma casa.
Era como há exato um ano. Na casa do bruxo alguém gritava, eu tinha certeza que os gritos vinham de lá.
Por um momento meu corpo ficou como pedra. Rígido e frio. Mas logo consegui virar de costas para olhar em direção a casa de número 521.
Não foi como da última vez. Foi bem pior.
Vi um braço estendendo-se para fora das grades da frente da casa. Nitidamente era alguém querendo sair.
Quando vi a cena fui tomado por um calafrio que subiu de minhas pernas ao mais longo fio de cabelo. Decidi sair de lá correndo e ir para a oficina. Mas essa decisão não permaneceu em minha cabeça por mais de alguns milésimos de segundo.
Minha opção dessa vez foi correr até a casa 521.
Chegando lá, quase que instantaneamente a mão que pedia ajuda segurou em meu colarinho. Fiquei apavorado, claro. Mas o que mais me apavorou foi que, como um de já vu, eu a vi novamente.
Era a velha, mas agora em carne e osso. Não era sonho, mas realidade.
Vi aqueles olhos com a mesma clareza que os via em meus pesadelos. Fui tomado por uma mistura de temor com tristeza. Sentia pena, sem saber o motivo.
Consegui me soltar por pouco tempo, pois em seguida a idosa segurou meu braço. Segurava-me com uma feição aflita. Seus olhos profundos e meio avermelhados não paravam quietos.
Segurou meu braço com tanta força que comecei a sentir dor. Ela voltou a gritar.
Nesse momento, eu também estava gritando. De dor e de terror.
Puxei-me para tentar me livrar das garras da velha, mas ela possuía uma força inexplicável.
A mão dela foi aos poucos escorregando. Mas foram “poucos” bem tortuosos. As unhas longas da idosa estavam cravadas em meu braço, ao escorregar elas passavam pela minha pele como uma faca sem dentes.
Em certo momento eu já estava quase solto. Somente minha mão era agarrada pelas garras da velha. Mas antes que eu conseguisse me soltar de vez, ela cravou suas unhas mais fundo em minha pele. Segurou minha mão com uma força assustadora, como se sua vida dependesse disso.
Eu estava quase soltando minha mão, mas ela ainda segurava meus dedos. Ao puxar de meus dedos eu pude ter certeza de que aquela era a velha que atormentava meus pesadelos nos últimos tempos. Apertava-os e puxava-os com força. Quando segurava somente o meu indicador e anelar eu puxei meu braço com toda a força que encontrei. Consegui me soltar, mas o preço foi meus dois dedos deslocados. Gritei com a dor intensa. Fechei os olhos como se estivesse tentando acordar de um pesadelo. Quando ergui minha cabeça e abri meus olhos foi como se tudo não passasse mesmo de um sonho.
Não havia mais velha nenhuma. Só o pátio vazio da casa 521.
Ouvi um barulho vindo da janela do pátio. Era o som de trincos sendo abertos. Uma das portas da janela abriu e eu pude ver o tal homem macabro. A casa por dentro estava escura. Ele segurava uma vela de cor vermelha e estava sem camisa.
Perguntou o que estava acontecendo, porque eu estava gritando.
Eu não consegui dizer nada. Somente corri. Mas não para o trabalho. Voltei para casa.
Chegando lá mil pensamentos passavam por minha cabeça. Mas o mais forte era se aquela velha seria a mesma mulher que gritava há exato um ano atrás. Será que eu devia algo para ela por não ter tentado ajudar quando pude? Ela morreu?
Não sei o que pensar sobre isso, na verdade não quero pensar nada. Só o que sei é que meu patrão me ligou dizendo que hoje o primeiro cliente apareceu às 7h. É um dia daqueles que fica na memória.
Nenhum comentário:
Postar um comentário