Século XX e as religiões de matrizes africanas no Brasil: Religiões no Rio são um rio de mistérios


Sabe-se muito bem que atualmente as religiões de matrizes africanas sofrem muito preconceito e discriminação. Mas acontece que tudo isso não surgiu hoje e nem do nada. A construção de uma mentalidade pré-estabelecida sobre todo e qualquer grupo religioso que se apresente sendo pelo menos um pouco inspirado nas religiosidades milenares do continente africano se forma desde os momentos de colonização.


Com o período de escravatura as crenças e práticas dos descendentes africanos foram discriminadas e até mesmo proibidas. Após o período de abolição a situação não mudou muito. O preconceito sobre as diversas práticas ligadas com as religiosidades do continente africano estava se moldando há muito tempo, e continua se moldando até os dias atuais.


Para pensar as continuidades das mentalidades sobre as religiões de matrizes africanas, convido você para passearmos em leitura pela obra “Religiões do Rio” de João do Rio, do ano de 1904.


A obra é de domínio público e pode ser baixada gratuitamente pela internet.


Jornal Gazeta do Povo de 14 de Março de 1904

Por hora, nos fecharemos em dois trechos da parte “No Mundo dos Feitiços – O Feitiço” para analisar um pouco da mentalidade da época sobre as religiões de matrizes africanas, mais especificamente o candomblé.


Paulo Barreto - João do Rio

A obra recolhe as pesquisas de campo do jornalista Paulo Barreto, sob o pseudônimo de João do Rio, sobre práticas de presbiterianos, maronitas, metodistas, batistas, adventistas, espíritas, judeus, e de cultos afro-brasileiros (que ficariam proibidos até 1930). O jornalista foca-se bastante em religiões com resquícios africanos, possivelmente tanto pelo pouco que se tinha sobre isso quanto por visar vendas.



Nós dependemos do Feitiço.
Não é um paradoxo, é a verdade de uma observação longa e dolorosa. Há no Rio magos estranhos que conhecem a alquimia e os filtros encantados, como nas mágicas de teatro, há espíritos que incomodam as almas para fazer os maridos incorrigíveis voltarem ao tálamo conjugal, há bruxas que abalam o invisível só pelo prazer de ligar dois corpos apaixonados, mas nenhum desses homens, nenhuma dessas horrendas mulheres tem para este povo o indiscutível valor do Feitiço, do misterioso preparado dos negros. (As Religiões no Rio - João do Rio - Editora Nova Aguilar - Coleção Biblioteca Manancial n.º 47 - 1976, p.10)

Nesse trecho, João do Rio expõe uma grande necessidade da sociedade da época pelo o que o autor nomeia de “Feitiço”. Por feitiço podemos compreender, ao analisar a obra, as práticas dos cultos que descendem do continente africano.

O trecho destacado comenta sobre a existência de “espíritos que incomodam as almas”. Podemos entender que a compreensão é de que esses espíritos são usados por magos para consertar maridos incorrigíveis. Também comenta sobre bruxas que mudam “o invisível” (se referindo ao "plano espiritual") para fazer duas pessoas se apaixonarem. Em seguida afirma que nenhum mago ou bruxa se compara aos feitiços preparados pelos negros. Nesse momento do texto é possível que o leitor da época construísse uma imagem ruim de cultos de matriz africana, pois o autor se refere a eles com um poder superior ao de qualquer mago ou bruxa.

O leitor do início do século XX possuía pouca, senão nenhuma, leitura disponível sobre as religiosidades africanas, ao serem apresentadas no mesmo nível de termos como bruxaria e feitiço poderia gerar nos leitores o aumento da mentalidade de que os “cultos de negros” eram demoníacos.

É provável que muita gente não acredite nem nas bruxas, nem nos magos, mas não há ninguém cuja vida tivesse decorrido no Rio sem uma entrada nas casas sujas onde se enrosca a indolência malandra dos negros e das negras. (As Religiões no Rio - João do Rio - Editora Nova Aguilar - Coleção Biblioteca Manancial n.º 47 - 1976, p.10)

O autor nesse momento afirma que qualquer um que viveu no Rio já havia entrado nas “casas sujas” que acontecem as “feitiçarias”. É interessante que em outro momento o autor destaca que foi capaz de ver moças da elite do Rio com o rosto coberto entrando em uma dessas casas de feitiços. Considerando essa afirmação é possível perceber que mesmo com toda a discriminação que a população construía sobre esses cultos, quando se encontravam necessitados recorriam a eles - algo comum ainda nos dias de hoje.

É notório ao longo da obra completa que o autor tem por objetivo continuar com a imagem de “maligno” sobre os cultos de matrizes africanas. Mas não malignos no sentido espiritual, pois ele defende que tudo não passa de mentira, e sim no plano financeiro. Defende que essas casas de feitiços possuem o objetivo único de conseguir dinheiro fácil. Marcando uma posição material sobre aquelas práticas, negando qualquer realidade de "plano espiritual" - algo que era inegável para aqueles que procuravam auxílio.

Os textos de João do Rio podem ser muito bem utilizados como fonte histórica para pesquisas que pretendem conhecer um pouco sobre as formas de compreender as religiosidades do Rio no início do século XX - de fato é utilizado em alguns trabalhos. Aqui mesmo já foi mencionado quando se abordou sobre a Umbanda. Leia clicando aqui.

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