A carne de paca e a surucucu


 

“Paca escura”. WATERHOUSE. 1846, p. 137.


Uma das maiores serpentes peçonhentas da América Latina é a surucucu. No Brasil, é mais frequente na região amazônica. No “Diccionario de medicina domestica e popular”, de 1865, de Theodoro J. H. Langgaard, apresenta-se a surucucu afirmando que “Esta cobra é muito venenosa mas apparece pouco nos lugares muito povoados, porque habita de preferência os mattos sombrios, onde se conserva debaixo da folhagem, sustentando-se de pequenos mammiferos, passaros e reptis”.

José Veríssimo registra no século XIX uma interessante crença amazônica sobre essa espécie de cobra. Quando tratou a respeito das "Tradições, crenças e superstições amazônicas"(1883), após mencionar os “curados” contra cobras, descreveu a crença na “metamorphose da surucucú” em “paca”. Veríssimo registrou que:

“A surucucú, contam elles, tem o somno muito pesado; os pajés aproveitavam-se d’elle para cercarem-na com uma pequena sébe [cerca] de varas e cobrindo a serpente com uma porção de formigas de certo genero, esperam que o truculento reptil se torne em nédia [gordurosa] paca” (VERÍSSIMO, José. 1883).

Tentando compreender de uma forma material a crença metafísica a respeito da transformação da surucucu em paca, o escritor afirma que “O facto real é que a surucucú acolhe-se ao buraco d’estas formigas, de que talvez faça alimento, onde também se entoca a paca que, segundo acreditam mais, vive em boa camaradagem com a cobra” (VERÍSSIMO, José. 1883).

A crença nesse processo de transformação da surucucu em paca, e em elas dividirem a mesma toca, impactou até mesmo regras nos hábitos alimentares da região amazônica. A carne de paca é considerada reimosa (inflamatória) justamente “porque tem o esporão da surucucu no vergadinho dela” (SILVA, Andréa. 2007, p. 140).

Grupos indígenas e ribeirinhos da região amazônica compartilham a crença de que o reimoso presente na carne da paca está intimamente interligado com a transformação de paca em surucucu, ou o inverso. Entre muitos grupos na Amazônia é comum a percepção de que “Esse negócio que a paca vira cobra diz que é verdade, diz que tem semelhança com surucucu” (CAMPOS, Marilena. 2008, p. 87). Defende-se ainda a existência de dentes de surucucu no interior do órgão reprodutor da paca. É possível encontrar relatos que narram a veracidade disso:

“Lá pra onde a gente morava aconteceu mesmo, real. O pai foi focar [caçar] com o filho dele de 10 anos, atirou numa paca, ai ele focou só que a paca ficou lá, meio viva, ai ele mandou o molequinho ir buscar a paca, o molequinho levantou da popa e pa! Ela colocou a preza lá no meio da perna, matou o menino. Ai ele viu que a paca se transformou em surucucu” (CAMPOS, Marilena. 2008, p. 87).

O livro de Elson Martins, que relata suas vivências no Acre, além de mencionar a “paca no tucupi” também registra um caso muito interessante. Sua família tinha uma espécie de paca doméstica. Durante um período de cio, essa paca frequentemente adentrava o mato e retornava apenas no período da noite, “para dormir junto ao enorme fogão à lenha com estrutura de barro e esteios de maçaranduba”. Porém, temendo o pior, a mãe de Elson passou a vigiar o retorno do animal. Conhecendo que paca “gosta de dormir com cobra venenosa”, as saídas eram sempre bem observadas.

Elson relata que, no início de uma noite de lua nova, a paca retornou de seu passeio pela mata. A mãe, na cozinha, percebeu algo estranho. A paca fazia sua caminhada de forma lenta, parando e olhando para trás. O melhor atirador entre os presentes pegou a espingarda, já aguardando o que iria aparecer. Foi quando se deparou com uma serpente seguindo a paca doméstica. Uma surucucu, ou “pico-de-jaca”, como é conhecida na região. Acreditavam que ela estava levando a serpente até seu local de dormir. Um disparo de “chumbo grosso” foi feito e encerrou a situação (MARTINS. 2023, p. 74-75).

No Pará é possível encontrar relatos semelhantes também em comunidades quilombolas. Nelas “A paca também é uma espécie de caça cercada de valores simbólicos, sendo relatada como reimosa porque tem dentes conspícuos e mora no mesmo hábitat da cobra surucucu, podendo, até mesmo, transformar-se nessa espécie de serpente, o que representa um fator de risco em situações liminares, uma vez que terão de volta a vingança da cobra morta” (FIGUEIREDO; BARROS. 2016, p. 701).

Essas características sobrenaturais do comportamento das pacas somam-se com as naturais e acabam por explicar as qualidades observadas na carne dessa espécie quando consumida por humanos.

Este texto ajuda na compreensão da lógica usada no meu conto "A surucucu, a paca e a feiticeira": https://dellcordovil.blogspot.com/2025/06/conto-surucucu-paca-e-feiticeira.html?m=1


Referências:

CAMPOS, Marilena Altenfelder de Arruda. Cruzando ecologias com os caçadores do Rio Cuieiras: saberes e estratégias de caça no Baixo Rio Negro, Amazonas. Dissertação (Mestrado em Ciências Biológicas - Ecologia) - Universidade Federal do Amazonas, Manaus. 2008.

FIGUEIREDO, R. A. A. de; BARROS, F. B.. Caçar, preparar e comer o ‘bicho do mato’: práticas alimentares entre os quilombolas na Reserva Extrativista Ipaú-Anilzinho (Pará). Boletim Do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 11(3), 691–713, 2016.

JOSÉ, Veríssimo. Tradições, crenças e superstições amazônicas. Revista Amazônica. 1883, Ano 1, N. 6, agosto, p. 205-214.

WATERHOUSE, George Robert. A natural history of the Mammalia. Vol. 1. H. Baillière, 1846.

MARTINS, Elson. Acre: um estado de espírito. Brasília: Edições do Senado Federal. 2023.

LANGGAARD, Theodoro J. H. Diccionario de medicina domestica e popular - III (M-Z). Rio de Janeiro: Laemmert. 1865, p. 75.

SILVA, Andréa Leme da. Comida de gente: preferências e tabus alimentares entre os ribeirinhos do Médio Rio Negro (Amazonas, Brasil). Revista de antropologia, v. 50, p. 125-179, 2007.



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