O que tinha no Jornal? Seguros para a cruel realidade escravista



Em um dia qualquer, do ano de 1867, quem comprasse o jornal Diário do Rio de Janeiro (RJ) teria acesso às atualidades da moda na coluna de “Variedades”. Entre os destaques estavam as vestimentas da rainha consorte de Portugal, Maria Pia de Saboia. “A rainha trajava uma saia curta de glace azul claro, com folho encarnudado, e com tres lindas rendas brancas formando avental. A segunda saia era de cambraia branca […] O penteado era levantado e, frisado, formando chignon [coque] muito alto”.

O jornal também noticiou o “sinistro grave” que envolveu a Imperatriz francesa Eugênia de Montijo e seu filho, Príncipe Napoleão Eugênio que à época tinha 11 anos. Tratava-se de um naufrágio do qual foram salvos pelo piloto da embarcação, que não resistiu e morreu.

No livro “Histórias de Reis e Príncipes” (1890), p. 227-228, o jornalista português Alberto Pimentel escreveu sobre esse naufrágio:

"Em 1867, estando a côrte em Biarritz, encontraram-se mãi e filho n'uma situação difficil, nada menos que um naufragio. […] A imperatriz conservou-se, dentro d'agua, abraçada ao filho, fluctuando com o auxilio de alguns dos marinheiros da canoa. E ternamente dizia-lhe:

—Não tenhas medo, Luiz.
—Não, mamã, respondia o principe. Eu sou Napoleão".

O leitor também veria um anúncio da Companhia Real de Seguros (Royal Insurance). O cliente teria proteção “contra risco de fogo, casas, fazendas, mercadoria de toda a especie”.

O negócio de seguros iniciou no Brasil no ano da chegada da família real, para atender interesses de grupos locais e também da própria Coroa. Antes de 1850 já existiam cerca de 18 companhias de seguro autorizadas no Império. 

As empresas estrangeiras que começaram a entrar no Império a partir da década de 1860 eram em sua maioria inglesas, o que é o caso da presente neste anúncio. 

Nesse período do século XIX, em que a escravidão ainda era legalizada, existiam seguradoras que vendiam apólices de seguro para escravizados. Não existem registros públicos de que a Royal Insurance comercializava tais contratos no Brasil (até porque seria prejudicial para a imagem da empresa na Inglaterra), mas não é impossível que tenham negociado de forma reservada.

As apólices para escravizados são um dos muitos exemplos das crueldades da escravidão no Brasil. Os negros escravizados eram registrados em seguros, mas não para sua proteção ou de sua família (a questão da família escrava é um tema interessante que talvez escreva no futuro) e sim da proteção econômica de seu "senhor" contra riscos.

O contrato de seguro era feito, com apólices compradas pelo dono de escravos, como garantia de amparo financeiro caso o escravizado morresse em seu trabalho. Quando o dono empregava seu escravo em uma tarefa considerada de perigo, buscava diminuir seus prejuízos caso a função provocasse o fim daquela pessoa escravizada.

Obviamente o senhor de escravos não via aqueles humanos como pessoas.

Os donos das seguradoras que ofereciam essas apólices, também não. 

Os vendedores que as comercializavam, tampouco.

Um pequeno retrato da crueldade escravagista que, até pouco tempo, dominava a economia brasileira.

Referências:

LANNA, Beatriz Duarte; SAES, Alexandre Macchione. Companhias de seguro na economia brasileira, 1889-1914. Economia e Sociedade, 2020, v. 29, p. 525-547.

NOGUERÓL, Luiz Paulo Ferreira. Seguros e preços de escravos na sociedade escravista brasileira do século XIX. Almanack, 2018, n. 20, p. 216-228.

PIMENTEL, Alberto. Histórias de Reis e Príncipes. Porto: Livraria Gutemberg. Editora. 1890, p. 227-228.

Nota: Esse texto foi publicado originalmente por mim no Instagram do Grupo Ananins (@grupoananins.hist) em 2022[?]. Alterei a imagem inicial, pois no original o nome do "quadro" semanal era "No dia de hoje, mas há muito tempo", pois era postado na mesma data que o jornal tinha sido publicado. Acrescentei um pouco mais de texto.
Hoje decididi começar o mesmo "quadro" por aqui. Sempre reproduzo as fontes históricas com a escrita orginial, inclusive os erros.



Nenhum comentário:

Postar um comentário

Leituras