Yu-Gi-Oh! me levou ao Mestrado em História

Não. Meu tema de pesquisa não teve nada a ver com Yu-Gi-Oh! - o jogo de cartas de monstros que lutam. Porém, se não fosse esse jogo, talvez não tivesse encontrado o tema de pesquisa que me fez desejar cursar o Mestrado em História.

A realidade é que o tema me encontrou, e não eu que o encontrei. 

Foi uma espécie de epifania. 

Em certa noite, em casa, eu estava jogando Yu-Gi-Oh! Duels Links. Quando algo me atingiu.

Apesar de detestar o modelo de jogo rápido dele, e preferir um deck de cartas com 40 ou mais (em batalhas bem mais longas do que o modelo do Duel Links), eu me divertia um pouco com esse aplicativo.

Enquanto eu me divertia, fui atingido por uma dúvida histórica.

Curiosamente, não foi uma dúvida gerada por algum artigo acadêmico, uma aula na Universidade ou um livro famoso de historiografia.

Lá pelos idos de 2018, a carta "Lenhador, o Herói do Elemento", que usei para vencer um duelo, fez surgir no meu cérebro a seguinte pensamento: "Lenhadores... Isso me lembra de lendas europeias, como a da Chapeuzinho Vermelho. A figura do lenhador sempre ligada com a produção de lenha para se aquecer no inverno. Característica dos países frios". 


Carta "Elemental HERO Woodsman", no BR chamado de "Lenhador, o HERÓI do Elemento". Fonte: mypcards.com.

A seguir veio a dúvida: "Pera aí... mas será que era uma exclusividade da Europa? Será que existia o uso do termo lenhador para definir um ofício frequente em regiões como a Amazônia?".

Pensei, amparado em minhas leituras sobre História Ambiental e História da Alimentação, na possibilidade de existir na Amazônia do século XIX (período que eu estava mais interessado na época) alguma presença de trabalhadores que poderiam ser considerados "lenhadores" - pois era necessário lenha para, pelo menos, cozinhar. Mesmo se o termo não fosse usado.

Meu objetivo era apenas sanar a dúvida. Fechei o jogo e fui para o computador.

Apenas pretendia ler algum trabalho que tivesse escrito sobre isso. Ou mencionado esse tema.

Descobri que existia - e ainda existe - um vácuo na produção acadêmica de História sobre o tema da produção, comércio e consumo de lenha. Alguns trabalhos citam a região Sul e Sudeste, mas nada de concreto tinha sido produzido sobre a região amazônica.

A maioria dos trabalhos que abordam o tema não possuem ele como foco principal. Encontrei apenas um artigo que discutia o comércio de lenha em Minas Gerais, no final do XIX e início do XX. O próprio artigo enfatizava que era um tema quase ignorado na historiografia brasileira.

Quando percebi isso, fui em busca de documentos históricos do século XIX. Jornais, Relatórios de Província, Relatos de Viagem, Desenhos e gravuras da época.

Pretendia apenas encontrar algumas informações que acabassem com minha dúvida - já que ninguém tinha produzido um trabalho que permitisse isso. 

Imaginei que encontraria pouca coisa, que nem mesmo iria me deparar com o termo "lenhador" na Amazônia. Afinal, em uma região cheia de árvores e sem frio intenso, dificilmente existiria a necessidade de alguém para acumular grandes estoques de lenha e comercializar. Minha hipótese era de que a coleta de lenha, e gravetos, seria o suficiente.

Minha hipótese se provou equivocada. 

As fontes demonstraram uma forte presença de lenhadores, chamados dessa forma, na Amazônia do século XIX. Quanto mais eu encontrava fontes históricas, mais eu percebia que havia me deparado com um tema complexo, intrigante e nunca pesquisado. 

Primeiro pensei em escrever apenas um texto para o Blog do Grupo Ananins, que faço parte. Porém, ao ver a complexidade do tema, percebi que não ficaria satisfeito com um simples texto.

Até então eu não tinha planos de sair da Graduação e cursar o Mestrado.

Quando essa pesquisa me encontrou, a situação mudou.

Comecei a perceber que uma Dissertação de Mestrado seria a produção mais adequada para discorrer sobre meus achados históricos - de muita importância para a compreensão da região amazônica de tempos passados.

Aos poucos as fontes me mostravam que os lenhadores eram indígenas, negros e brancos pobres. Eu percebia que existia uma complexa relação entre trabalho compulsório, trabalho assalariado, convencimento de indígenas, conhecimentos e usos da floresta, ideias sobre propriedades privadas e públicas, e a produção e comércio de lenha na Amazônia.

Descobria, em contato com a documentação, que o ambiente amazônico do século XIX apresentava algumas cenas que antes pareciam ser possíveis apenas na Europa. O comércio de lenha, mesmo em uma região tida como berço de uma infinidade de árvores, era frequente para as cozinhas de cidades do Pará e Amazonas. 

Percebi que a partir da década de 1850, com a introdução da navegação a vapor, a necessidade por desmatamento ampliou significativamente. As embarcações a vapor precisavam de lenha para navegar. Para lenha ser produzida, precisavam de braços para cortar árvores.

As fontes revelaram que grandes estoques de lenha eram formados para alimentar a fornalha dos vapores. Isso, como descobri, alimentou, em alguns indivíduos do século XIX, o temor de "matas calvas e estragadas" - que é o termo de um documento histórico, que compõe o título de minha Dissertação, defendida em 2024.

Na Amazônia do século XIX, os "lenhadores" não apenas existiam e eram chamados dessa forma, mas também estavam inseridos em uma complexa interação social que envolvia rios, ruas, humanos, outros animais e diferentes espécies de árvores.

Foi apenas por descobrir toda essa complexidade, ainda não pesquisada por outros historiadores, que decidi entrar de fato no Mestrado em História (em 2021, quando concluí a Graduação, para a turma de 2022 no PPHIST-UFPA).

Toda a trilha para meu encontro com o tema da produção, comércio e consumo de lenha, surgiu no momento em que a carta Lenhador, o HERÓI do Elemento, invocou em mim a dúvida histórica. 

Dúvida, criada pelo jogo Yu-Gi-Oh!, que me levou ao Mestrado em História.

4 comentários:

  1. Dell, adorei essa história de como um jogo de cartas que muita gente acha só diversão te lançou numa jornada acadêmica surpreendente e tão rica! É incrível como as dúvidas mais inesperadas, até as que surgem em momentos de lazer, podem abrir portas para temas inéditos e pesquisas profundas. Essa tua descoberta sobre os lenhadores na Amazônia mostra como a curiosidade é o motor da verdadeira investigação histórica. Parabéns por seguir esse chamado e transformar um insight casual numa dissertação tão relevante! Mal posso esperar para ver os frutos desse trabalho que une passado, floresta e até cartas de monstros!

    Abraço,
    Fernanda!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Agradeço o comentário, Fernanda. Minha ida e conclusão do Mestrado foi mesmo um "seguir esse chamado". Caso esse tema não tivesse me encontrado, muito possivelmente eu não teria vontade de me empenhar em uma pesquisa no Mestrado em História. Obrigado novamente pelo comentário.

      Excluir
  2. Muitíssimo interessante. Gostei muito de ler este seu texto e como foi convencido ao mestrado com este tema.
    Abraço.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá, que ótimo que foi um texto de leitura satisfatória. Obrigado pelo comentário.

      Excluir

Leituras