Em sua primeira página, o jornal Correio Paulistano, no dia 13 de abril de 1922, apresentava uma notícia sobre um ataque de lobos na Itália. Destacava que “Por causa da neve e do frio excessivos, desceram das montanhas grandes alcateias”. Comenta ainda de um comboio que foi atacado e teve que se defender com “pistolas e revólveres” quando “os animaes precipitaram-se contra a locomotiva”.
Esse caso exemplifica que nem sempre “o homem é o lobo do próprio homem”. Ao longo da história humana no planeta, o lobo era o fim de muitos homens, mulheres e, principalmente, crianças. Os ataques de lobos famintos contra comunidades humanas eram muito comuns na Itália até pelo menos 1825. A região não conhecia uma luta organizada contra os lobos, como a que existia desde o século IX na França – a Louveterie (A tripulação para a caça ao lobo) instituída por Carlos Magno. No fim do caso mencionado no jornal, “Ficaram feridos muitos animaes e mordidos alguns passageiros”.
Já na quinta página do jornal o animal era outro. “Compram-se ratos”, era o que informava o anúncio do Serviço Sanitário. Com o problema da peste bubônica, era necessário ao governo pensar soluções. Pelo menos desde o início do século XX, a Diretoria Geral de Saúde Pública (DGSP), e outras instituições, pagavam dinheiro em troca de ratos mortos. A política pretendia diminuir de forma rápida o número de ratos e, consequentemente, de casos da peste bubônica.
Um jornal de São Paulo, de 25 de janeiro de 1900, chegou a divulgar a incineração de 667 ratos, cada um comprado por 400 réis. Com a compra de ratos, por valores entre 200 e 300 réis, pela DGSP apareceu uma quase profissão: os ratoeiros. Compravam ratos a baixo custo, ou mesmo criavam em cativeiro, e vendiam para a Diretoria. No Carnaval de 1904 um dos sucessos foi a música “Rato, rato”, de Casemiro da Rocha, que fazia referência a um personagem que encontrava um rato e cantava “meu tostão é garantido/não te solto nem a pau”.
Mais sobre animais poderia ser encontrado na mesma página daquela edição. Um anúncio da “União Internacional Protectora dos animaes”, a UIPA. A instituição foi fundada no Brasil em 1895 e é a mais antiga do país no que diz respeito a causa de proteção aos animais. Sua ideia de formação nasceu quando o suíço Henri Ruegger assistiu, em 1893, na Praça da República em São Paulo uma apresentação circense na qual um homem quebrava tijolos na cabeça de um cavalo.
Procurou uma instituição protetora de animais para denunciar o caso. Ficou assustado quando descobriu que não existia nenhuma no país. O jornalista Furtado Filho, considerando as reclamações de Ruegger, publicou um artigo sobre o tema. Dois anos depois foi fundada a UIPA, com a Presidência de Inácio da Gama Cóchrane.
Fonte:
Jornal Correio Paulistano (SP). 13 de out. de 1922.
Jornal Lavoura e Commercio (SP). 25 de jan. de 1900, p. 2.
Referências:
BRASILIANA FOTOGRÁFICA. As doenças do Rio de Janeiro no início do século XX e a Revolta da Vacina em 1904. 2020.
CORTI, Michele. Il lupo e la politica (a Bergamo, e alta Italia, duecento anni fa). 2017.
BENHAMMOU, Farid. Review [Untitle] L’homme contre le loup: une guerre de deux mille ans Paris. Études rurales, n. 189, 2012.
LINNELL, John D. C. et al. Is the fear of wolves justified? A Fennoscandian perspective. Acta Zoologica Lituanica, v. 13, n. 1, p. 34-40, 2003.
MORICEAU, Jean-Marc. L’homme contre le loup: une guerre de deux mille ans Paris. Fayard, 2011, 479 p.
NASCIMENTO, Dilene Raimundo do; SILVA, Matheus Alves Duarte da. A peste bubônica em Portugal e Brasil: uma análise comparada (1899-1906).Vozes, Pretérito & Devir: Revista de historia da UESPI, v. 2, n. 1, p. 21-32, 2013.
OSTOS, Natascha Stefania Carvalho de. União Internacional Protetora dos Animais de São Paulo: práticas, discursos e representações de uma entidade nas primeiras décadas do século XX. Revista Brasileira de História, v. 37, p. 297-318, 2017.
SILVA, Matheus Alves Duarte da. “O Novo Commércio Oswáldico”: circulação de conhecimento e o controle da peste bubônica no Rio de Janeiro e em São Paulo (1894-1910). Revista Brasileira de História da Ciência, v. 9, n. 2, p. 189-202, 2016.
UIPA. Fundada em 1895. http://www.uipa.org.br/historia/.
Que coisa estranha isso de comprar os ratos! Nunca imaginei. E o brasileiro sempre com jeitinho para se dar bem. Criar para depois vender. Absurdo!
ResponderExcluirObrigado pelo comentário, Reinaldo. Essa questão de criar ratos para conseguir lucrar com o que seria uma medida de saúde pública é, de fato, muito interessante. Afinal, esse "absurdo" causava o contrário do que a compra pelos órgãos de saúde pretendiam: aumentava a quantidade de ratos (que eram até criados) e a possibilidade de contaminação.
ExcluirDell, seu texto me levou por um verdadeiro passeio nas páginas do tempo entre lobos, ratos, trens e revoltas silenciosas que moldaram, à sua maneira, o que chamamos de civilização.
ResponderExcluirÉ curioso e perturbador como o humano, ao lidar com o animal, revela tanto de si. O medo dos lobos esfomeados, a prática quase absurda de comprar ratos como solução sanitária, e por fim a fundação da UIPA como se entre o instinto de matar e o impulso de proteger, fôssemos todos, coletivamente, tentando entender o que é ser humano. Este texto me lembrou que a história não é feita apenas de grandes guerras ou tratados políticos, mas também desses pequenos gestos de desespero, de sobrevivência e, felizmente, de compaixão.
Obrigada por essa aula escrita com ritmo, precisão e alma. É sempre um privilégio te ler.
Beijo
Fernanda