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Idosa com sacolas. Desenhado à mão, colorido digitalmente. 2025. |
Há pouco, quando eu fazia o trajeto de volta para casa, dois idosos falaram comigo.
Depois de uma rápida passada pela feira local, eu retornava pelas ruas.
Pensei em parar e sentar no banco de uma praça, bem em frente à feira, para descansar sob a sombra das árvores.
Frequentava aquela praça quando era pequeno. Era decorada e mantinha alguns brinquedos infantis.
Lembro que entre a decoração existia um grande lápis. Eu chamava o lugar de Praça do Lápis, mas nunca soube se tinha um nome oficial.
Observei os urubus em um dos cantos da praça, decerto atraídos pelos aromas da feira. Dois urubus, para ser mais exato.
Eles me fascinam.
Um pouco pelas suas características físicas, biológicas e muito pela sua história aqui na região amazônica (há alguns anos, fiz pesquisas históricas sobre essa espécie. Uma das minhas produções sobre eles pode ser lida AQUI).
Um dos urubus estava no piso de terra batida, debaixo das árvores da praça, protegido do trânsito, perto de um carro estacionado. O outro, insistente, tentou se manter na margem da pista, fora da praça. Quando um carro se aproximou, no susto, também subiu o meio-fio e se protegeu na Praça do Lápis.
Lá o carro não atingiria nenhum urubu.
Abandonei a ideia de descansar em um banco de praça e continuei meu trajeto.
No canto de uma das ruas por onde entrei, bem no momento em que cheguei à esquina, me deparei com uma senhora. Uma idosa de cabelos grisalhos e óculos. Segurava sacolas de compras nas duas mãos.
Ela me olhou como se tivesse me reconhecido. No mesmo segundo eu pensei que ela tinha se confundido. Mas a frase seguinte deixou a situação mais compreensível.
- Nossa... Parece muito com o meu neto!
Falou isso enquanto me olhava admirada pela suposta semelhança.
Eu sorri. Ela sorriu.
Continuamos os nossos caminhos.
Sem saber mais nada um do outro.
Quando ela se afastava, e eu também, lembrei de olhar para trás. Tentar registrar na memória uma imagem da idosa. Afinal, eu não tenho o costume de atentar detalhes nas outras pessoas ao redor.
Só lembro das roupas dessa senhora porque olhei de volta. Ela vestia uma camisa azul e uma saia preta, abaixo dos joelhos.
Olhando a senhora se distanciar, sorri mais uma vez, pensei na situação como uma interessante crônica do cotidiano.
Continuei meu caminhar.
Mais próximo de casa, na frente de uma escola muito conhecida por aqui, vi outro idoso.
Esse também estava com sacolas na mão. Porém, diferente da senhora, esse não tinha feito compras. Estava entre um amontoado de resíduos. Nitidamente buscava algo ali.
Antes que eu me aproximasse, ele largou a ideia de encontrar o que pretendia achar.
Começou a andar.
No momento em que passei ao lado dele, ele chamou:
- Rapaz, sabe dizer qual rua dessas tem o local pra vender esses ferros velhos?
Eu disse que não fazia ideia. O idoso perguntou então qual era a rua principal. Expliquei que por ali as principais eram as paralelas, chamadas de SN. Mas ele insistiu perguntando qual era a principal no sentido transversal e não paralelo.
Aqui, traduzo os termos do diálogo, pois no lugar de "paralelas" e "transversais" ele usou palavras como "Assim", "Aqui" e gesticulações com uma das mãos.
Também expliquei em outros termos, comentei que em sentido transversal (gesticulando e também usando "Assim") não havia principais.
Aqui no bairro as ruas são divididas em SN (South-North), paralelas, e WE (West-East), transversais. Apenas há alguns anos uma ou outra ganhou nome humano, mas que no cotidiano vivido são ignorados. Desde a década de 1970 as ruas seguem o formato cartesiano (mais sobre o tema pode ser lido AQUI), facilitando a identificação. Nomes humanos dificilmente serão de fato adotados.
Perguntei se ele sabia o número da rua. Afinal, isso resolveria a situação. Mesmo faltando as placas, eu poderia facilmente indicar para onde ir, pois para identificar a rua correta só era necessário saber em qual ele estava.
Não respondeu meu questionamento e foi um pouco grosseiro.
Ignorou e saiu dizendo algumas coisas que não entendi. Apenas a última frase me foi compreensível:
- Segue o teu caminho.
Percebi que tinha me deparado com duas "crônicas" seguidas.
Sorri.
Depois dei ouvidos ao conselho do idoso.
Segui meu caminho.
Oi Dell,
ResponderExcluirque belo passeio por essas pequenas “crônicas do cotidiano” é impressionante como você costura momentos tão distintos
(os urubus na Praça do Lápis, o reconhecimento inesperado da idosa, a busca confusa do senhor pelos ferros-velhos) e revela um fio comum: o olhar atento que transforma o ordinário em narrativa.
Gosto especialmente de como você mostra a delicadeza
(e a impessoalidade) dos encontros de rua dois idosos que te confundem e, ao mesmo tempo, te oferecem descobertas sobre você mesmo; urubus que buscam refúgio; gestos e palavras que se perdem e se acham nos desvãos das esquinas. O resultado é um texto que pulsa humanismo: cada personagem, cada desvio no trajeto, faz a gente lembrar que as histórias mais tocantes estão nos interstícios do dia a dia. Obrigada por compartilhar essa caminhada literária saio daqui com vontade de olhar cada esquina com o mesmo encanto observador que você teve.
Beijinho
Fernanda!
Agradeço por mais uma leitura tão sensível, Fernanda. Penso que é importante observarmos, pelo menos algumas vezes, com mais sensibilidade nossos dias normais. Geralmente, apenas quando saímos do nosso lugar, e fazemos viagens, é que nos atentamos para as histórias comuns. Mas é bom notar as vidas vividas ao redor do nosso dia a dia. Sejam vidas humanas ou animais.
ExcluirConcordo inteiramente, Dell. Há tanta riqueza no que parece comum mas só parece. Às vezes, basta um olhar mais atento para perceber que o extraordinário mora ali, nos gestos diários, nas presenças silenciosas, nos detalhes que costumam passar despercebidos. Obrigada por sempre lembrar disso com tanta delicadeza.
ExcluirQue sempre lembremos de perceber o extraordinário em nosso cotidiano.
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